Hipnose

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À primeira vista, a simbologia parecia não ter relação com a hipnose. Por sua vez, nada nesta inaudita ligação poderia fazer pressupor que alguém como Belling, com formação em hipnose clínica, enveredaria por uma interpretação mais espiritual do seu trabalho. O interesse pela simbologia não tinha aparentemente ligação com a sua formação de base. Embora considerasse que tinha hoje mais abertura de espírito, Belling era uma pessoa lógica e analítica quando se iniciou na carreira, talvez porque começara cedo a estudar medicina e neurologia. Assim, desde logo aprendeu que o ser humano é composto de muitas conexões nervosas, com formas de organizações específicas na sua biologia, sendo constituído por cérebro, espinal medula e nervo. Ao mesmo tempo, todo o corpo é controlado por um conjunto complexo de movimentos e de sensações. De todos os órgãos que existem, o mais importante de todos era o cérebro humano. De facto, embora este represente apenas dois por cento da massa do corpo, a verdade é que ele recebe vinte e cinco por cento de todo o sangue que é bombeado pelo coração. O sangue, que é um fluído que através das suas correntes leva os nutrientes necessários às células e aos diferentes órgãos humanos. Para um bom hipnotizador como Marcus Belling era fundamental conhecer o funcionamento deste órgão, sobretudo o lobo frontal ou a área pré-frontal do cérebro, que possui uma função executiva. Essa função, como ele sabia, era responsável pela atenção, pensamento e resolução de tarefas, com a qual prevemos resultados do nosso comportamento no futuro: ao mesmo tempo, ganhamos consciência das decisões que tomamos. Para Belling qualquer hipnotizador deveria tomar conhecimento do funcionamento do corpo humano.

Quando há mais de vinte anos, Marcus Belling se tornou membro do Conselho Nacional de Hipnose, ele foi pioneiro em defender que o estudo das neurociências era fundamental para a hipnose. Era uma realidade, que há duas décadas, existiam ainda muitos mitos e superstições relacionados com a hipnose e, portanto, era através do recurso às ciências que se tornaria possível a desconstrução dessas ideias pré-concebidas. Não seria exagerado afirmar que era possível entrar-se num paradoxo quando se tentava descrever a hipnose. Por um lado, era uma espécie de arte, por outro tinha contornos de ciência. Assim, era uma “arte” porque nem todos os hipnotizadores dominavam esta técnica com sucesso e, por outro, porque nem todas as pessoas podiam ser hipnotizadas. Nesse sentido, o transe hipnótico também variava de indivíduo para indivíduo, podendo ser mais profundo ou, ao contrário, ser tão leve ao ponto de o paciente em causa nunca conseguir verdadeiramente relaxar para ser hipnotizado. Todavia, era ao mesmo tempo também uma ciência, porque um bom profissional neste campo teria de compreender a fisiologia humana, o seu sistema nervoso e o funcionamento do cérebro. Esta era a perspetiva de Marcus Belling.

Retomando o poder dos símbolos, Belling apercebera-se que a simbologia era fundamental para compreender melhor as potencialidades da hipnose. Nesse sentido, ele estava bastante grato por ter conhecido uma paciente como a Carla que lhe tinha mostrado um outro mundo para além daquele que ele, enquanto hipnotizador, conhecia. Isso também acontecia. Também era possível os hipnotizadores ficarem mais sábios com as pessoas que hipnotizavam. Esta era sempre uma experiência enriquecedora, para ambas as partes. Contudo, rapidamente Belling também se apercebeu que simbologia e linguagem estavam igualmente conectadas entre si. Uma dependia da outra. Por conseguinte, neste aspeto, Belling chamou a atenção dos outros colegas de profissão para a relevância do discurso do hipnotizador, realizando para o efeito formações diversas sobre linguagem orientada para a hipnose.

A experiência de Belling demonstrava a importância da linguagem persuasiva que, quando introduzida na hipnose, veio a dar lugar à chamada “hipnose conversacional”. Duas palavras particularmente utilizadas durante o transe hipnótico pareciam fazer toda a diferença na pessoa em estado de transe. Essas palavras eram, precisamente, o porque e o mesmo. Gradualmente, Marcus Belling foi então introduzindo estas palavras no início das sessões de hipnose e, de forma imediata, apercebeu-se que o transe costumava nestas situações ser bastante mais profundo. Normalmente, ele começava por dizer aos seus pacientes:

– Gostaria mesmo que se sentasse numa posição confortável, que fechasse os olhos e tentasse relaxar... e isto, porque é mesmo importante que me escute... tranquilamente... sem pressas…

Através do poder da linguagem, usando por exemplo o “porque” e o “mesmo” em momentos especiais da sua fala, Belling era capaz de hipnotizar pessoas que tinham resistido à hipnose com outros hipnotizadores. Alguns desses pacientes embora não o confessassem, vinham desanimados das suas sessões de hipnose com Josef Salvaterra. Por essa razão, aos poucos, os relatos destes casos pessoais fizeram crescer o mediatismo de Marcus Belling. A sua abordagem inovadora em relação à hipnose mostrou-se, neste aspeto, decisiva. Belling utilizou todos estes conhecimentos para desenvolver, ele próprio, uma linguagem cativante com as pessoas, granjeando assim fama e bastante dinheiro. Mais dinheiro do que Josef Salvaterra, o que só podia constituir uma situação de inveja para Marbella.

O aparecimento de Carla mudou um pouco a perspetiva que Marcus Belling tinha em relação à sua carreira e à hipnose, mas a mudança maior viria com Anne Pauline. Em ambos os casos, estas mulheres acabariam por abalar as suas convicções, colocando-lhe dilemas que, quando superados, lhe mostravam um mundo totalmente novo acerca da mente humana. Era esta a beleza da sua profissão.

Marcus Belling e Josef Salvaterra eram duas pessoas e dois hipnotizadores muito diferentes. Salvaterra tinha hábitos que podiam ser considerados “tradicionais”. Gostava de colecionar velharias e evitava os mesmos espaços públicos que o seu colega rival. Tal como Marcus Belling e Anne Pauline, possuía uma pequena biblioteca particular em casa. Ao longo dos anos, adquirira diversos livros sobre hipnose, terapia de vidas passadas, regressão, magia, misticismo e espiritualidade. Mas não só. Marbella influenciara-o também noutras áreas como as ciências ocultas, a necromancia, a tarologia e a futurologia. Inclusivamente, nos últimos anos tinham sido feitas novas aquisições de livros sobre transmutação de metais. Era assim visível o interesse cada vez maior na chamada crisopeia, ou seja, a arte de transformar metais em ouro. Josef Salvaterra não compreendia o interesse intenso de Marbella neste tema, mas é verdade que ela costumava montar um verdadeiro laboratório em casa na tentativa de destilar ouro potável através de chumbo.

Por outro lado, pode-se afirmar que Marcus Belling tinha hábitos mais “modernos” e as grandes dificuldades na sua carreira estavam relacionadas com as consequências naturais do seu mediatismo. Uma vez, numa entrevista para o canal público de televisão, uma jornalista mais arrojada, alta de cabelos pretos bastante longos, perguntou a Belling se ele usava a hipnose em casa para hipnotizar a mulher. A pergunta fez soltar imediatamente uma convulsão de risos por parte da plateia. De certa forma, o acontecimento acabou por marcar o panorama televisivo desse ano, mas a resposta de Belling pretendeu não alimentar mais a polémica: «A hipnose baseia-se no pressuposto que ninguém, sem exceção, é hipnotizado sem o consentir. Não se constrange a pessoa a fazer algo que não queira. Nesse aspeto a hipnose é sinónimo de liberdade pois dá-se liberdade ao outro para transformar os seus pensamentos e atitudes para que possa enfim desfrutar de uma vida mais plena».

No dia seguinte, para grande tragédia pessoal de Sofia Estelar, mas sem admiração, quase todas as mulheres do país ligaram para o gabinete da Avenida do Sol para agendarem uma sessão de hipnose com o famoso hipnotizador. A crise que se seguiu a essa entrevista fez Marcus Belling tomar a decisão de que, dali para a frente, iria aparecer menos na televisão. A verdade é que ele se podia aproveitar para se divertir um pouco com a situação, mas cabia, no fundo, a Maria de Burgos gerir de forma inteligente as consequências das suas aparições públicas. Depois deste episódio, como já seria de esperar, jornais e revistas sensacionalistas exploraram o assunto sem limites, especulando se existiria uma relação extraconjugal entre a jornalista do programa e o próprio Belling. Algumas revistas, dentro do estilo satírico, mostravam a jornalista de cabelos pretos longos a ser hipnotizada por Marcus Belling enquanto este sugeria uma “terapia a dois”. As semanas seguintes representavam muito trabalho para Maria de Burgos que pensava sempre para si mesmo: “Será que ele não podia ter dito as coisas de outra forma?”. Podia. Mas se o fizesse já não era o Marcus Belling que todos conheciam.

Patricia Murio sabia gerir estas situações de forma sensata. Não se sentia claramente confortável com a ideia de que os jornais publicavam notícias acerca de casos extraconjugais do marido com as jornalistas, mas nada disso correspondia à verdade. Ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, ela não tinha sido conquistada exclusivamente pelo carisma de Belling. Ao mesmo tempo existia nela um despojamento da alma que tinha chamado a atenção de Belling e fora sobretudo, por causa disso, que ele se tinha apaixonado por ela. Patricia Murio ajudava-o a procurar o essencial e a libertar-se do supérfluo no meio do caos que por vezes se gerava com o seu mediatismo.

No dia em que Anne Pauline apareceu na vida de Marcus Belling, ele quis regressar mais cedo a casa. Há muitos anos que existia uma aliança secreta entre a mulher e Sofia Estelar que controlavam as potenciais clientes que pretendiam aproximar-se do famoso hipnotizador. A aliança funcionava com sucesso há muitos anos e, por uma vez ou outra, detetou sinais perigosos de avistamento e aproximação femininas que foram rapidamente eliminados. Essas mulheres, por seu turno, foram eficazmente colocadas fora do percurso. Por essa razão, apesar de Patricia Murio não se encontrar na Avenida do Sol, a logística montada permitia-lhe, através da sua “cúmplice”, controlar todos os movimentos do marido e daqueles que o rodeavam. Foi assim com alguma surpresa, e receio, que recebeu o telefonema de Belling avisando de que ia chegar mais cedo a casa. Marcus Belling era um trabalhador incansável. Não lhe faltava, pois, o mérito na sua carreira repleta de sucessos profissionais e, mesmo os que não gostavam dele, não lhe podiam apontar a falta de trabalho no seu percurso. Existia uma boa razão para Belling chegar mais cedo a casa nesse dia, e Patricia Murio sabia-o. Por momentos, não sabia o que deveria pensar e, um pouco desesperada, pensou ainda em ligar a Sofia Estelar para tentar saber se tinha acontecido algo fora do habitual no gabinete do marido. Mas conteve-se. Não quis naquele momento mostrar a sua fragilidade à secretária pessoal do marido.

 

Marcus Belling chegou a casa. Patricia Murio abraçou-o e, com surpresa, reparou que ele começara a chorar. Ele mantinha-se calado, sem capacidade de pronunciar uma única palavra. Como ela bem sabia, ele era confrontado, em algumas sessões, com sentimentos profundos e inexplicáveis que lhe pareciam ter sido transmitidos pelos seus pacientes quando estes faziam regressões às suas vidas passadas. De alguma forma, os traumas destas vidas passadas pareciam ter impacto no espírito de Belling, ficando estes a pairar no seu gabinete até desaparecer ou incorporar o seu corpo e alma durante vários dias. À primeira vista poderia parecer uma situação bizarra. De certa forma até o era e Marcus Belling já tinha perguntado a outros hipnotizadores se eles também sentiam o mesmo quando praticavam a Terapia de Vidas Passadas. A verdade é que muitos deles tinham receio de confessar que o mesmo também sucedia com eles. Por alguma razão, não queriam que isso fosse do conhecimento do Conselho Nacional de Hipnose.

Praticar a Terapia de Vidas Passadas trazia consigo, por vezes, a incompreensão perante a ocorrência de certos fenómenos. Não só parecia existir uma passagem de sentimentos entre hipnotizador e hipnotizado, como o terapeuta sentia quase como seu o sofrimento do paciente. Não existia conforto nesta situação. Belling convencera-se, ao longo do tempo, de que existia uma espécie de transferência de emoções e que os hipnotizadores - ele e os colegas - não estavam imunes às vidas passadas dos seus pacientes. Nunca tinha falado disto com Patricia Murio, mas a verdade é que ela conseguia sentir tudo. Ele não precisava de lhe dizer nada, pois ela sabia que era isso que sucedia com o marido.

Os dois subiram rapidamente as escadas e apaixonados estenderam-se na cama. Os lençóis serpenteavam-lhes o corpo húmido numa confusão de gestos e palavras murmuradas quase em silêncio, enquanto se sussurravam frases de amor. As lágrimas de Belling transformaram-se em algo que já não era mais do que confusão. Num último ato e suspiro deram as mãos, esticaram os corpos e desapareceram na paixão que os unia. Patricia percebeu então que Belling continuava a chorar, não de forma convulsiva, mas de uma maneira cândida e mais controlada como se precisasse de se despojar daquele intenso sentimento que estava a tomar conta de si. Ele agora tinha a certeza, de que aquele sentimento estranho que tivera, quando vira Anne Pauline pela primeira vez no seu gabinete da Avenida do Sol, significava muito mais do que uma simples intuição.

A Primeira Sessão de Hipnose

França, 1785

1

O DIA TINHA CHEGADO. Este era o primeiro dia em que Anne Pauline iniciaria as suas sessões de hipnose com Marcus Belling sem que pudesse compreender ainda como isso iria mudar a sua vida e a do famoso hipnotizador.

O dia estava radiante. Há muito tempo que a jovem de olhos verdes ansiava pelo momento em que poderia regressar ao seu passado através da regressão: talvez aqui residissem as respostas para as suas inquietações. Ainda assim, tudo não passava de uma especulação. Efetivamente, ela não podia ter a certeza se já tinha tido vidas passadas, apesar de a intuição lhe dizer que sim. Ela também não sabia se as suas ansiedades estavam relacionadas com traumas do passado, mas a intuição dizia-lhe que sim. Por fim, ela não sabia se Marcus Belling seria a pessoa certa para a ajudar, sobretudo depois de ter descoberto que ele era aquele homem misterioso e obscuro dos seus sonhos, mas uma vez mais a sua intuição respondia-lhe sempre de forma positiva; o famoso hipnotizador seria capaz de ir rebuscar lembranças perdidas que a faziam sentir-se perdida, culpada, ansiosa e incapaz de definir a sua identidade.

Tornou-se inevitável Anne Pauline não questionar como é que poderia ser curada através da mesma pessoa que tinha contribuído para ela duvidar acerca de si mesma. Aquele homem com o mesmo tom de voz do de Marcus Belling, colocava-lhe todas as noites um conjunto de perguntas que a fazia duvidar se ela merecia conhecer o seu passado. Será que ela era digna? Será que ela era respeitosa? Ela considerava-se uma pessoa digna e merecedora da sua própria verdade, mas numa determinada fase da vida já não sabia se deveria procurar a ajuda do famoso Marcus Belling. Durante muitos anos viveu neste dilema, até finalmente ter decidido tomar coragem para tocar à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol.

Na vida de Anne Pauline Roux existia uma estranha mistura de sentimentos. Vivera muitos anos com os pais na vila piscatória onde aprendera a escutar os sons do mundo enquanto admirava o horizonte ao final do dia; apenas isso lhe trazia alguma tranquilidade. Mas durante a noite, tudo mudava. Os sonhos tentavam agarrá-la uma vez mais, e ela não sabia se deveria abrir a porta ao desconhecido. Ao mesmo tempo, sentia que não era verdadeiramente livre. Era como se alguém a tivesse aprisionado num determinado tempo; de certa forma, parecia que lhe tinham acorrentado a mente e a alma. Também sempre sentira que a alguém a atraiçoara, embora não conseguisse explicar bem esta sensação, que lhe parecia andar perdida num passado remoto. Todas estas circunstâncias criavam uma mistura de sentimentos, nem sempre fáceis de definir e sobretudo, alimentavam uma inquietação enorme na alma de Anne Pauline. Foi por essa razão que, após vários anos de reflexão, ela decidira consultar Marcus Belling e experimentar a Terapia de Vidas Passadas. Naquele dia, quando ela saiu para a cidade, o famoso hipnotizador preparava-se para sair de casa. Beijou Patricia de forma carinhosa e dirigiu o passo para o gabinete.

Neste dia, Marcus Belling tinha decidido também visitar o seu amigo sapateiro da Avenida do Sol chamado Thaddeus Borba: era um homem com mais de setenta anos que continuava a exercer a sua profissão com a mesma dedicação, como há quarenta anos. Sendo um incansável trabalhador, Thaddeus partilhava bastantes afinidades com Belling com quem mantinha uma relação próxima e de amizade, como não acontecia com todos os seus clientes. No caminho até ao consultório, o famoso hipnotizador saboreou ao máximo os cheiros daquela manhã de verão. Ele era um cliente regular do sapateiro, a quem deixava muitas vezes os seus sapatos para arranjar. A verdade é que Marcus Belling gostava de ajudar todos aqueles que trabalhavam na Avenida do Sol, recorrendo para tal aos seus serviços, como por exemplo, comprando um bom livro no alfarrabista ou uma cómoda antiga no antiquário ou, simplesmente, pedindo ao sapateiro para engraxar os seus sapatos. No sentido de ajudar a economia da Avenida do Sol, tinha também sido criado há alguns anos, o conhecido “Clube Livre da Avenida”, uma organização que integrava todos aqueles que trabalhavam, viviam ou simplesmente adoravam ou idolatravam a reputada Avenida do Sol. Efetivamente, o Clube estava longe de ser uma entidade fechada e elitista, pois os seus membros promoviam a abertura da sua filiação, a difusão da cultura e das artes na Avenida do Sol e a preservação da sua história. Como não podia deixar de ser, Marcus Belling fazia parte do Clube há muitos anos, mas nem sempre era um frequentador habitual devido ao pouco tempo que dispunha. O mesmo já não se passava com Georgine Gunderson que decidira integrar o dito Clube para continuar a sua pesquisa acerca da história da Avenida do Sol. Poucos sabiam disto, mas uma lenda contava que tinha existido muito ouro por debaixo desta avenida que acabou por se tornar, séculos mais tarde, no centro cosmopolita da cidade. Por essa razão, tinha sido erigida a estátua de Fénix, que mais não era do que uma alusão à história esquecida da Avenida. “História talvez esquecida por conveniência”, pensou Georgine, pois se a lenda era verdadeira, poderia bem ser possível que, mesmo por debaixo dos seus pés, existissem toneladas de ouro. Neste dia, ela tinha regressado à antiga biblioteca nacional e sozinha preparava-se para mais um dia de trabalho.

Como normalmente acontecia, sempre que tinha um pouco mais de tempo, Belling visitava Thaddeus. O sapateiro era uma pessoa especial e diferente de todas as outras. Marcus Belling, como tantos outros, considerava-o um dos melhores sapateiros do país, pois ele era capaz de fazer cada cliente sentir-se uma pessoa especial. Todos nutriam uma forte admiração por ele, muito embora, infelizmente, para desgosto de alguns, ele não pudesse deixar o legado dos seus preciosos conhecimentos acerca da sua profissão a uma geração que os pudesse perpetuar. Neste dia, Marcus Belling não se esquecera de Thaddeus, mas desta vez ele não trazia sapatos para arranjar. Deu-lhe sim, uma súbita vontade de o cumprimentar e de rever o seu agradável sorriso que ele reservava sempre para cada cliente. Uma vez mais, como se cada pessoa fosse única.

– Bom dia Thaddeus, como está? – perguntou Marcus Belling.

– Senhor Belling, bom dia. Hoje apareceu por aqui cedo. Como é que o posso ajudar? Não me diga que apareceu por causa aqueles sapatos que eu lhe arranjei da última vez. Não ficaram bons? – perguntou Thaddeus.

– Não se preocupe Thaddeus, gostei muito do seu trabalho. Hoje não lhe trago sapatos, como de costume. Venho apenas saber como está. – respondeu Belling com um sorriso.

Thaddeus não era apenas conhecido por ser “o sapateiro” da Avenida do Sol e um dos últimos da sua nobre profissão. Como nunca se tinha casado nem nunca tinha tido filhos, não existia uma geração de bons sapateiros que lhe pudesse descender. Mas não era apenas um sapateiro que se perdia, um dia, com a sua partida. A tristeza das pessoas adensava-se porque ele era o único sapateiro que tocava alaúde enquanto entoava versos que contavam a verdade acerca da vida das pessoas, razão pela qual ele era conhecido como o “Trovador da Verdade”. Para outros, ele não era um trovador, mas sim um oráculo, pois cada um dos versos que ele declamava e cantava, continham uma visão de futuro à pessoa a quem estes eram dirigidos. Assim, por detrás de uma simples trova, escondia-se, como todos sabiam, um prognóstico sobre momentos futuros que, muitas vezes, tendia a concretizar-se. Esta foi a maneira encontrada por Thaddeus Borba para entreter os seus clientes, enquanto eles esperavam pelos seus sapatos arranjados. A inovação do seu método, permitiu-lhe de facto, granjear bastante fama na cidade e com uma reputação cada vez maior, foi ganhando cada vez mais clientes. A arte dos versos e do alaúde era algo a que recorria com frequência, e foi isso que aconteceu, quando viu Marcus Belling aproximar-se naquela manhã. Thaddeus já conhecia o famoso hipnotizador há muitos anos para saber quando ele precisava de um conselho sábio. Rapidamente, ao som da música, as palavras fluíram da sua boca:

Às vezes é melhor saber

Do que esperar para ver

A pessoa que irá aparecer

vai mudar o seu parecer

Surpreendido, Marcus Belling não estava à espera de ser o destinatário da trova da verdade naquele dia: aliás, era extremamente raro um dos versos lhe ser dirigido e no fundo ele sabia bem o que isso significava. Ele tinha de estar atento ao seu futuro. Assim, escutou em silêncio a pequena trova que parecia conter todo o seu mundo: “mais valia saber/ do que esperar para ver”, mas afinal o que pretendia o sapateiro dizer com aquelas palavras?

Como outras pessoas que conheciam Thaddeus Borba, também Belling pensou que, por detrás daquela profissão, se escondia um verdadeiro oráculo. Todos sabiam que a cada trova correspondia um pedaço da verdade da vida daquela pessoa, por isso era tão importante não a esquecer e guardá-la na memória, mesmo que não se compreendesse o conteúdo. Marcus Belling não foi capaz de conter a pergunta:

 

– Porque é que me estás a dizer isso Thaddeus? Quem é que vai mudar a minha opinião? Falas através de códigos e não compreendo aquilo que dizes. O que é que sabes sobre o meu futuro?

– Todo o futuro está nestes versos. Não se esqueça deles. – respondeu simplesmente o sapateiro.

Nesta altura, já Thaddeus Borba sabia bastante acerca do futuro próximo de Marcus Belling, mas não lho poderia dizer. Apenas os verdadeiros oráculos estavam autorizados a avisar os outros acerca de acontecimentos próximos ou fornecer pistas sobre um caminho futuro, sem poder interferir na liberdade de cada um. Esta situação deixara o famoso hipnotizador bastante inquieto e incomodado, pois não sabia como lidar com a sua vida depois de ter ouvido aquela trova. Voltou então a olhar os olhos do sapateiro: o seu olhar era sincero. Neste instante, o sol estava agora no pico máximo e o movimento na Avenida do Sol começava a adensar-se à medida que as famílias aproveitavam aquele dia de verão para tomar um café nas esplanadas. Belling viu o sapateiro guardar o alaúde e soube, desta maneira, que estava na altura de continuar o seu caminho até ao consultório. Despediu-se de Thaddeus com um gesto afetuoso, mas teve a preocupação de guardar para si aqueles versos enigmáticos.

Marcus Belling chegou ao n.º 27 da Avenida do Sol e cumprimentou Sofia Estelar com um sorriso inquieto. Dentro dele, de forma inconsciente, Thaddeus ainda lhe estava a cantar a trova da verdade. Ao mesmo tempo, Sofia apercebeu-se imediatamente do seu estado de espírito, mas julgou que este estava relacionado com Anne Pauline. Os dois sabiam que ela iria aparecer naquele dia, para a sua primeira oficial sessão de hipnose. Belling não iria apenas voltar a relembrá-la dos propósitos da hipnose e da Regressão, como iria aproveitar a oportunidade para lhe reforçar a segurança interior, demonstrando-lhe que era fundamental existir uma relação de confiança entre hipnotizador e hipnotizado.

***

Marcus Belling dispunha na sua vida profissional de uma rede logística bem montada para assegurar a continuidade das suas sessões e do seu trabalho. Por isso, era difícil imaginar uma situação, tal como descrita por Thaddeus Borba, que lhe pudesse fugir ao controlo. Contudo, o sapateiro falava-lhe agora de uma pessoa que iria aparecer e provavelmente mudar o seu futuro, se ele compreendera corretamente. Este era um código de palavras difícil de desmontar.

O famoso hipnotizador sentiu necessidade de desabafar com Sofia Estelar. Ela já se tinha apercebido do seu rosto mais interrogativo e do seu estado de preocupação desde que ele chegara ao gabinete nesse dia. Assim, Belling contou-lhe acerca do seu encontro com o “Trovador da Verdade” e, embora sem o alaúde a acompanhá-lo, voltou a entoar os versos encriptados que lhe tinham sido ditos nessa manhã. De facto, Sofia já tinha ouvido falar dos mitos em redor das trovas do sapateiro, mas ela não acreditava que Thaddeus pudesse ser um verdadeiro oráculo. Ela estava segura de que não existia nenhuma circunstância que pudesse abalar a rede de segurança montada à volta de Marcus Belling, protegido por toda uma que assegurava a continuidade do trabalho desenvolvido naquele reputado consultório.

Para Sofia Estelar não existia lugar no consultório da Avenida do Sol para fenómenos do oculto, embora ela compreendesse que, com facilidade, as pessoas associavam tais ideias à hipnose e à Regressão: aqui incluíam-se também as trovas do sapateiro da Avenida do Sol. Nessa medida, Sofia Estelar disse simplesmente a Belling numa tentativa de encerrar aquela conversa que a incomodava:

– Esqueça o que Thaddeus Borba lhe disse. Não seja influenciado pelos versos dele. Podem chamar-lhe as “Trovas da Verdade”, mas sabe bem que isso não é uma ciência.

– Pois Sofia, mas não te esqueças que muitas pessoas já relataram que alguns dos acontecimentos que ele canta através daqueles versos se tornam realidade! – disse o hipnotizador.

– Primeiro Anne Pauline, agora isto. Tem mesmo de esquecer esses versos! Concentre-se no seu trabalho e deixe para trás essas histórias. – pediu imediatamente Sofia Estelar.

Marcus Belling olhou a sua secretária nos olhos e decidiu seguir o conselho. Seria impossível que o sapateiro da Avenida do Sol pudesse realmente saber o que iria acontecer com ele num futuro próximo. Ele compreendeu a perspetiva de Sofia Estelar, mas a verdade é que, desde que começara a praticar a Terapia de Vidas Passadas, existiam muitas situações que já o tinham posto a pensar, especialmente o sentimento estranho que se apoderava dele quando certos pacientes começavam a relatar as suas experiências de vidas passadas; isso fazia-o questionar até que ponto as almas não viajavam no tempo. Por outro lado, após ter deixado a hipnose clínica ele tinha desenvolvido uma certa visão espiritualista da vida; ele já tinha descoberto que a mente humana tinha muitas potencialidades, embora nada o pudesse preparar para o que iria descobrir com Anne Pauline.

Depois de Marcus Belling ter desabafado com Sofia Estelar, o hipnotizador abriu a porta do seu consultório. O gabinete não era grande, mas cada área de trabalho estava bem dividida: à direita, um conjunto de estantes guardava os livros da sua biblioteca particular, à esquerda encontrava-se a sua secretária em estilo vitoriano, e na parede observava-se pendurada a fotografia dele com Sofia Estelar, no dia em que o consultório abrira pela primeira vez as suas portas. A meio do gabinete destacava-se o sofá verde, encomendando há dez anos por Sofia Estelar, que tinha sempre uma opinião sobre a decoração do consultório. Ela fazia questão de manter esta influência, recebendo sugestões de Patricia Murio que, desta forma, também detinha um controlo discreto sobre a vida do marido.

Como todos os hipnotizadores, Belling sabia que o sofá era o elemento mais emblemático de qualquer consultório de hipnose e, por isso, não tinha poupado esforços para encontrar um em que as pessoas se pudessem sentir confortáveis. As viagens ao subconsciente exigiam que o sofá de qualquer hipnotizador transmitisse uma sensação de paz e segurança aos seus pacientes, algo que era muitas vezes difícil de encontrar noutro lugar na maioria das vidas das pessoas que o procuravam.

A um canto do gabinete encontrava-se a biblioteca particular de Belling e que sempre tinha sido um auxílio à sua carreira. Aqui, para além de livros sobre a medicina, alquimia e astrologia, existia ainda uma vasta coleção de textos dedicados exclusivamente à hipnose, à regressão e às neurociências. Na parte dedicada à Terapia de Regressão, o famoso hipnotizador guardava consigo um dos livros mais conhecidos sobre o tema, intitulado: “A Regressão: Um Novo Entendimento”, de T. Hommas. Nascido em 1919, o autor foi pioneiro na sua época em escrever sobre a Regressão numa altura em que ainda existia pouco conhecimento a circular sobre esta forma de terapia. De facto, só a partir de 1857 é que se começaram a desenvolver as primeiras teorias acerca da sobrevivência da alma em relação ao corpo e unicamente em 1967 é que se dá um reconhecimento da chamada “Terapia de Vidas Passadas”. O livro de T. Hommas, publicado em 1950 constituía, assim, uma verdadeira enciclopédia com vista a decifrar toda a linguagem relacionada com a regressão e vidas passadas. Formado em Humanidades e Psicologia, T. Hommas veio uns anos mais tarde a interessar-se pela hipnose e a desenvolver estudos aprofundados nesta área. Na realidade, ele foi pioneiro ao explorar a aplicação de uma terapia de regressão como forma de tratamento de instabilidade emocionais e, em casos mais severos, em situações de transtornos psicológicos. T. Hommas tentou assim desenvolver uma terapia não convencional, hoje mais aproximada à Terapia de Vidas Passadas, o que acabou por suscitar divergências no seu meio profissional e que foram complicadas de gerir durante a sua vida. No fundo, ele pretendia explorar as potencialidades da mente humana e a sua capacidade para recordar eventos passados que tivessem ocorrido numa vida anterior. Talvez, por essa razão, Hommas também se veio a interessar pela neurologia, embora a maior parte dos textos que publicara em vida abordassem a questão da regressão quando aplicada durante o transe hipnótico. Uns anos mais tarde, como resultado de investigações posteriores, ele viria a publicar outro livro igualmente conhecido entre os hipnotizadores intitulado: “Psicologia e Mente: a Terapia na Hipnose, o seu Conceito e Abordagem”. A obra, que estava igualmente disponível na biblioteca de Marcus Belling, constituiu a primeira tentativa de compilação de experiências relatadas por pessoas que afirmavam ter lembranças acerca das suas vidas passadas. Estes eram testemunhos de pessoas que haviam participado nas terapias que Hommas desenvolvera nas suas sessões de hipnose. Era a primeira vez que um hipnotizador abordava abertamente este tema expondo, desta forma, relatos pessoais e reais.

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