Formar-se en psicología

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El contexto como punto de referencia clave en la formación

Formar psicólogos implica colocar a realidade social dentro da aula

https://doi.org/10.17230/9789587206937ch1

Ana Bock conversa com Valéria Mori *

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)

A professora Dra. Ana Bock é professora titular de Psicologia da PUC-SP, onde ministra aulas no curso de Graduação em Psicologia e no curso de Pós-Graduação em Psicologia da Educação. Tem várias publicações como organizadora, autora ou coautora. Participa de comissões editoriais de várias revistas na área de Psicologia. Tem experiência nesta área, com ênfase em Psicologia Sócio-Histórica, atuando e pesquisando principalmente nos seguintes temas: psicologia, educação, psicologia sócio-histórica, profissão e compromisso social, e dimensão subjetiva da desigualdade social. Coordena o grupo de pesquisa “A Dimensão Subjetiva da Desigualdade Social: suas diversas expressões”. Foi presidente do Conselho Federal de Psicologia por três gestões. Preside o Instituto Silvia Lane-Psicologia e Compromisso Social.

Valéria Mori: Ana, você poderia nos falar um pouco da sua formação em Psicologia?

Ana Bock: Eu fiz Psicologia de 1970 a 1975 na PUC-SP. Na época, o curso tinha seis anos. A antiga faculdade de Psicologia era o que hoje compõe o curso de Psicologia da Faculdade de Ciências, Filosofia... Nossa, agora eu já não sei mais. Ah, Filosofia, Ciências e Letras, é da PUC. E eram seis anos. Depois do meu ano, quem entrou em 1971 já fez o curso com a reforma, quando já totalizava cinco anos, mas no meu tempo ainda eram seis. A minha foi a última turma de seis anos da Faculdade São Bento, porque depois virou Faculdade de Psicologia. E tem isso: era um curso ainda com uma visão bastante relacionada a uma perspectiva positivista da ciência e da pesquisa. Era uma formação behaviorista forte. Inclusive, eu fui monitora na cadeira de comportamental.

Quando eu estava no segundo ano, havia um monte de professores, uma gente muito ativa dentro do curso. Mas a junção com a faculdade, com o Sedes Sapientiae – que era uma faculdade, um curso, com uma tradição clínica –, essa junção da São Bento com o Sedes Sapientiae traz pra dentro do curso uma diversidade muito interessante, porque continuavam lá aqueles professores. A PUC sempre teve uma perspectiva muito forte a respeito da diversidade. Mas enfim: essa junção trouxe um olhar clínico mesmo forte pra dentro do curso, um olhar que convivia com a pesquisa. Os behavioristas, naquela época, nem faziam formação em Psicologia, porque a gente fazia até a metade do quarto ano e, quando o concluíamos, a gente era bacharel em Psicologia. E depois nós fazíamos os dois últimos anos, quinto e sexto, pra virar psicólogos. E os behavioristas faziam só até o quarto ano (eu posso estar errada aí: talvez até o quinto e último ano. Mas eu sei que eles faziam só a formação do bacharelado, não faziam psicologia). E a junção trouxe a clínica, trouxe essa cara mais de profissão. Então, o resultado foi uma junção de uma coisa mais profissão, mais clínica, com uma coisa de pesquisa. Eu me lembro que entraram professores, por exemplo, da fenomenologia. Eles eram muito presentes no curso. Tinha uma diversidade. Nós já tínhamos os psicanalistas, os junguianos, os kleinianos, já era uma coisa muito diversificada. Enfim: o meu curso é o velho.

Mas por que que eu cito os dois? Porque, como alunos, nós fizemos um movimento para que, nos dois últimos anos, nós cursássemos junto com a turma nova. Então nós passamos, nós fomos um ano pra trás, né? Eram seis anos, mas no quarto nós fizemos de novo o quarto ano e o quinto com o pessoal que vinha já da reforma, que tinha um curso muito mais aberto, um curso politizado. Porque a PUC funcionou com o ciclo básico, que era muito interessante, foi uma experiência maravilhosa que a universidade fez. Havia, assim, disciplinas comuns em toda a PUC, para todos os cursos. Então, em uma sala de aula, às vezes tinha aluno do Direito, da Economia, da Psicologia, da Administração, da Fonoaudiologia. Eram cinco disciplinas básicas. E aí os alunos da Psicologia faziam três disciplinas, as chamadas específicas. Assim, essa experiência do ciclo básico trouxe diversidade para o ambiente universitário, algo fundamental no momento em que estávamos vivendo (eram os anos de chumbo, né?). Nós já tínhamos superado, passado a fase de uma ditadura mais tímida para uma muito firme, muito forte, muito violenta. Isso teve efeito no curso, na PUC: foi o momento de a Teologia da Libertação ir se desenvolvendo. A PUC foi um lugar de muita resistência e que tinha, portanto, uma perspectiva de formação muito progressista.

Valéria: Como Silvia Lane e Martin Baró entram nesse processo de formação na PUC?

Ana: Então, a Silvia era uma professora de Psicologia Social. Quando terminei a minha monitoria, em comportamental, eu estava no segundo ou no terceiro ano. Depois disso, eu saí dessa monitoria e fui pra monitoria de Psicologia Social, em que acompanhei a Silvia Lane. Eu fiquei muito tempo com a Silvia, porque ela foi minha professora, mas, como monitora, foi durante pouco tempo, porque ela foi convidada para abrir uma pós-graduação em Psicologia Social. Assim, ela foi embora pra pós. Mas eu fiquei com a equipe dela, com a qual eu passei a trabalhar. Mais pra frente eu iria me matricular na pós-graduação como aluna dela. A Silvia foi uma diretora muito interessante, muito inquieta. Ela fazia questão de produzir uma inquietação no curso. Nesse sentido, eu me lembro de ter sido representante dos alunos no conselho departamental. Ela sempre queria nos desafiar, ela desafiava aquele coletivo a pensar alguma coisa diferente no curso. Por isso, ela foi, de certa forma, a idealizadora dos núcleos. Eu diria até que a gente poderia dizer que ela efetivamente foi essa idealizadora, porque ela tinha a preocupação de que a prática dos estágios fosse sempre acompanhada pela reflexão teórica. Assim, ela trouxe essa preocupação e é o conjunto desses professores e alunos que vai inventar o que até hoje existe na PUC: trata-se dos núcleos, que consistem num estágio que você faz na instituição, acompanhado de disciplinas teóricas que subsidiam, que refletem, que questionam aquela prática. Nunca é uma prática solta. Muitos cursos têm os estágios soltos, isto é: depois que você fez todas as disciplinas teóricas, você faz o estágio. A PUC não. Ali, o estágio é acompanhado de disciplinas teóricas: são três, quatro disciplinas teóricas que o acompanham. E isso vem da preocupação da Silvia com essa ideia de que a prática nunca podia estar solta, porque o estágio não deveria ser pensado como uma aplicação da técnica, né?

Valéria: E você percebe essa não dissociação do estágio com as disciplinas no curso da PUC ainda no momento atual?

Ana: Então, eu diria pra você que eu percebo essa tendência ali até hoje, mas como concepção. Isso não quer dizer que ali se configure o espaço de um núcleo, onde as disciplinas teóricas estão rodeando a prática, proporcionado efetivamente essa integração. Mas os professores mais antigos sabem disso. Os professores se preocupam com isso, os alunos cobram isso, porque é apresentado para eles que aquelas disciplinas teóricas deverão subsidiar a prática, tanto do ponto de vista técnico quanto da reflexão crítica. Então, os alunos cobram isso dos chamados núcleos. E até hoje isso funciona desse modo: quando você apresenta a proposta de um núcleo, é preciso mostrar uma ação existente entre a prática de estágio que você está oferecendo e as disciplinas teóricas que você está propondo. Então, a Silvia está na origem disso, porque ela tomava a ideia de práxis como uma ideia central. E isso é algo que ela, como diretora, vai incentivar, produzindo ali com aquele conjunto o que poderia ser o formato. Quando os núcleos se instalam, ela já não é mais a diretora, mas o trabalho dela estava na origem disso tudo. Estamos falando, portanto, de um período – esses anos de 1970 até 1975 – que tem o curso velho, que é o meu, e o curso novo, reformado, que tinha que ser pensado, instalado. Porque além do desafio de se pensar um curso novo, havia o de integrar o Sedes Sapientiae bem como o curso que vinha dele, que virava faculdade de Psicologia, sob o comando da Madre Cristina. Ela já tinha uma perspectiva crítica e trabalhava muito na clínica, mas carregava aquela preocupação de como fazer uma clínica para a população. Se junto isso com a perspectiva dos behavioristas –que, na PUC sempre foram behavioristas muito críticos, behavioristas de esquerda–, isso tudo forma um caldo fantástico, resultando numa inovação muito positiva para o curso. A isso tudo ainda se junta outra força positiva, progressista, que era a que vinha da Igreja. A PUC tem como um de seus cursos obrigatórios, que já passou por vários nomes, uma disciplina de Introdução ao Pensamento Teológico (acho que esse é o seu nome atual). Na época, chamava-se Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo, abrangendo um grupo que não era obrigatoriamente constituído de padres, pois havia inclusive mulheres, filósofas, além do Mário Sérgio Cortela e da Terezinha Rios, que trabalhavam nessa disciplina. Desse modo, havia toda a influência do pensamento progressista que a Igreja alimentava naquele momento. O setor mais conservador que a gente tinha ali era a Psicologia Organizacional e do Trabalho, que contava com professores mais críticos, mas que, em seu formato, era conservadora. Enfim, nós tínhamos uma formação bastante inquieta, bastante questionadora. O próprio ambiente da universidade era um ambiente que ajudava. Por isso, eu sempre digo: meu curso foi muito bom, mas a minha universidade foi muito melhor! Porque eu fiz teatro, eu fiz coral, eu participei do movimento estudantil, eu participei da fundação do centro acadêmico de Psicologia. Nós tínhamos uma atuação de todos os estudantes da universidade, o que formou um fórum de articulação dos estudantes dos vários cursos. O único que não participava era o centro acadêmico do curso de Direito, que era de direita, mas ainda assim participavam os estudantes de esquerda daquela faculdade. Então, tínhamos um grupo assim, bastante diversificado, de estudantes de vários cursos que faziam um movimento estudantil. E como o movimento estudantil era muito cerceado, muito visado e eu era mais ingênua...

 

Valéria: Mais ingênua como, Ana?

Ana: Já volto a esse ponto. A liderança desse movimento entendeu que tinha que disfarçar o movimento estudantil, então ela abriu o curso de teatro e o coral, sendo nesses espaços que a gente fazia discussão política. Eu era ingênua, porque tinha dezessete anos quando entrei na faculdade (faço aniversário em julho, no final de julho. Então, fiquei um semestre com dezessete anos). Assim, eu era ingênua. Eu vinha da escola pública, do ensino do clássico. E era muito estudiosa, aquele modo de ser colegial.

Apesar de a minha família ter até um certo nível de compreensão, de participação política (porque eu tinha amigos da minha mãe que eram perseguidos políticos, por exemplo um tio na Bahia e a esposa de um amigo dela que também era perseguido político e a quem a minha mãe escondeu) e como eu era jovem, a gente não era muito informado a respeito disso tudo, até porque era perigoso. Então, eu entro na universidade sem saber o que acontecia nesse país. Meu pai falava dos generais, o diabo. Mas assim, sem muita possiblidade de análise ou de compreensão disso. Quando eu entrei na universidade, não se discutia absolutamente nada disso, se discutia Psicologia. A Psicologia era muito fechada (ou eu não escutava, não tinha condições de escutar o que se podia falar, mesmo que disfarçadamente). Eu fui muito infeliz no primeiro ano do meu curso, eu não via a hora de voltar pra casa, eu odiava a PUC, eu achava tudo ruim, eu chorava, eu chegava em casa e chorava. E minha mãe me disse: “Mas não tem lá na universidade um coral, uma coisa pra você entrar? As universidades têm times. E se você jogar alguma coisa?” E eu então vi um dia lá, em 1972, quando estava no terceiro ano, uma placa em que se lia “Coral na Universidade Católica”. E eu fui lá e me inscrevi pra entrar no coral. E não percebi de imediato que o coral era um lugar de trabalho político das lideranças. Lá, eles me convidaram também para o grupo de teatro; eu fui para ambos e adorava. Comecei a adorar a viver na universidade, arranjei amigos, arranjei um marido. O Silvio era do centro acadêmico e era do curso de Pedagogia. Fizemos teatro juntos (ele era desse grupo). E eu tinha muitos amigos, meus amigos até hoje são feitos quase todos na universidade. Mas eu era bastante ingênua, eu tinha dificuldade de compreender do que se falava, então eu fiz um treinamento intensivo para em dois anos estar à frente do grupo que criou o centro acadêmico de Psicologia. Eu fui do grupo que fundou o centro acadêmico de Psicologia da Faculdade de Psicologia da PUC. Mas enfim: essa é que era a minha ingenuidade. Era ingênua porque eu não tinha discussão política acumulada, eu não participava de partido político. Eu só fui entrar em um partido clandestino no meu último ano de universidade. Nesse momento, passeia fazer parte de um partido que se chamava Liga Operária, e que depois vai se tornar a Convergência Socialista e, mais adiante, o PSTU, mas já não faço mais parte dele. E isso mudou a minha vida, mudou a minha vida! Porque eu passei a ser uma aluna cri-cri. Eu não aceitava qualquer coisa que se dissesse, eu achava a Psicologia reacionária, eu achava que a gente não tinha uma perspectiva teórica crítica da Psicologia. Claro, isso eu estou falando com as minhas palavras de hoje. Naturalmente, naquele meio em que isso ia se formando, haviatodo um grupo comigo, que foi me ajudando e, ao mesmo tempo, eu fui buscando uma formação que pudesse me inserir de outro jeito na Psicologia. Então, na altura em que me formei, em 1975-1976, eu já era professora. Aliás, eu já era professora desde 1974, porque me tornei bacharel antes, já reunindo condições para dar aula. E a equipe de Social, onde eu era monitora, me convidou em 1974 para ser professora da equipe de Social na UNIP, que na época chamava Objetivo. É nesse momento que eu viro professora. Quando fui fazer Psicologia, eu não almejava me tornar professora, eu não queria ser professora. Queria ser clínica, qualquer coisa, menos professora. E, como eu era monitora, a oportunidade que me aparece é que a equipe me chama pra ser professora. Fui professora da equipe e assim, depois que tive essa oportunidade, eu me formei e ingressei como professora na PUC de SP, isso em agosto de 1976.

Valéria: Então você começou na UNIP e depois foi pra PUC.

Ana: É, eu comecei na UNIP em 1974, quando fui professora da equipe do que naquela época se chamava Faculdade Objetivo. Depois, emagosto de 1976, virei professora da PUC, momento em que me desligo do Objetivo e viro professora só da PUC. Então você veja que, quando eu comecei a dar aula, em 1974, eu tinha exatamente vinte e dois, vinte e três anos. Eu devo ter começado em agosto... Eu tinha vinte e três anos, eu era muito jovem. Hoje os professores jovens que entram na universidade têm vinte e oito ou vinte e nove anos.

Valéria: É, você entrou uma menina!

Ana: Eu era uma menina! Sim, eu tive dificuldades para dar minha primeira aula. Eu tive dificuldades porque eu cheguei muito cedo, estava muito nervosa. Cheguei muito cedo, sentei em uma cadeirinha lá na UNIP e fiquei. Aí as meninas foram chegando, elas não perceberam a diferença que havia entre mim e elas. E u achando que existia uma diferença, mas que elas não tinham percebido. E aí elas foram conversando sobre as férias, foram conversando, conversando e não percebiam que eu, a professora, já estava lá, porque eu estava sentada nas cadeiras dos alunos. Eu não havia tido coragem de assumir a mesa, então tive que me apresentar como professora.

Mas enfim: entrei na PUC também muito jovem, fiz uma carreira. Nunca tive preguiça de chefiar, de me dedicar a um cargo, sempre aceitei isso. Então, virei chefe de departamento. Depois, houve uma pressão pra gente fazer mestrado e doutorado. Fui fazer meu mestrado com a Silvia e levei doze anos fazendo meu mestrado.

Valéria: Por que doze anos, Ana?

Ana: Porque não tinha pressa nenhuma. Não tinha pressão pra terminar, a CAPES não estava no pé da gente para acabar. Não existia esse tipo de avaliação. Eu me lembro que, quando a PUC pressionou seus professores a fazer mestrado, pós-graduação, já existia uma conversa qualquer de que o curso seria avaliado a partir do número de professores titulados, então a gente vai, se matricula, mas leva doze anos para acabar!

Eu me lembro que, no meio desse período em que desenvolvi minha pesquisa de mestrado, entrei para o Sindicato dos Psicólogos. Em 1979-1980, virei diretora no Sindicato dos Psicólogos, com um conjunto de professores da PUC. Eu fui então para o sindicato e a Silvia falava assim: “Não, agora você dá uma paradinha na sua pós-graduação! Não faça nenhuma disciplina. Venha, nós continuamos aqui a discutir o seu projeto e os textos”. Me lembro que ela estava trazendo aquela perspectiva marxista para pós-graduação e inclusive a gente estudava textos, mas ela dizia: “Não precisava cuidar da sua dissertação, você fica lá no sindicato... Eu acho que é muito importante isso que você está fazendo!”.

Então, eu levei doze anos para concluir o mestrado. E isso se não fosse a Mary Jane Spink ter assumido a coordenação da pós-graduação e ter dito “vamos parar com essa brincadeira, porque a Capes vai cortar as nossas bolsas”, exigindo que a gente se titulasse. Éramos eu, o Odair Furtado, a Junqueira, a Graça Gonçalves, um conjunto de professores de Psicologia Social, que estávamos nesse processo. A gente teve que correr, mas eu devo ter me matriculado em 1978 e me titulado, acho, só em 1990, se não me engano. Em seguida, me matriculei no doutorado e em 1997 eu sou doutora em Psicologia, mas em quatro anos. Então nós terminamos (na verdade, acho que eu me matriculei um pouquinho mais tarde... Caso seja preciso olhar as datas corretamente, a gente confere os documentos). Como aluna, eu tinha um pé no curso e um pé no centro acadêmico. Como profissional, ou seja, como professora, eu tinha um pé na docência do ensino superior e um pé no trabalho sindical, que depois vira conselho. Nessa trajetória, eu chego até o Conselho Federal. Na realidade, eu pulo: do Sindicato eu vou pra FENAPSI, que é a Federação Nacional dos Psicólogos, da qual eu fui a primeira presidente, e depois eu passo um tempo distante, terminando –(provavelmente) meu doutorado e aí sim eu entro no Conselho Federal. É nesse momento, e então, que eu venho para o Conselho Regional, volto para o Conselho Federal e me desligo para cuidar, com meus amigos, do Instituto Silvia Lane, que idealmente era pra ser uma coisa muito maior e de que a gente não dá conta, por conta de nossos trabalhos paralelos. Mas enfim, vamos levando.

A minha formação, em síntese, envolve toda uma mistura uma mistura que tem uma história. Naquele momento e naquele contexto, que empurraram meu curso para um lado progressista –por conta da Igreja, por conta da junção com o Sedes Sapientiae, por conta de um pensamento progressista que influenciava fortemente as universidades (em especial aquelas que já tivessem um terreno fértil para tanto, como a PUC)–, naquele momento e naquele contexto, enfim, eu também participei do coral e do teatro, fui representante dos alunos no Conselho Departamental da Faculdade e depois virei representante num órgão superior. Desse modo, eu tive uma vida estudantil de que uma metade era completamente alienada e calada, e a outra metade era bastante ativa, bastante interessada em tudo o que eu fazia. E tudo isso ia se juntando. Depois, no último ano, houve a participação em um partido político, e tudo isso se juntava sob o guarda-chuva da Psicologia. Eu acho que em momento nenhum eu abandonei a ideia de que eu fazia Psicologia. Só que não era aquela Psicologia que era majoritária e hegemônica a que eu queria fazer, eu tinha críticas a ela. Lógico, a esquerda dirá logo: “desvio burguês”. Falo dessa perspectiva burguesa, elitista, segundo a qual a gente chegava na sala de aula e o professor dizia: “Olha, isso é burguês, isso é elitista”. Mas tive professores como a Maria Nildes Mascelanio, que convidava pessoas como o Florestan Fernandes pra dar aula pra gente, Paulo Freire, e aquelas pessoas todas estavam na PUC. Então, havia no curso de Psicologia uma influência de professores mais da esquerda, bem como uma tendência progressista forte, mas a Psicologia hegemônica também estava lá e me incomodava. Não só a mim, aliás: essa presença incomodava a todos aqueles que faziam movimento político. Mesmo que fosse bom, a gente tinha que dizer que era elitista. E isso, então, me levou ao sindicato, me levou a um mestrado sobre a minha profissão, me levou a um doutorado sobre a minha profissão. Por isso tudo, acho que, de certo ponto de vista, eu estive sempre com a Psicologia, insatisfeita com ela, brigando com ela, dizendo: “você não é bonita, não gosto de você assim”, mas com o desafio de estar com ela e poder ajudar a transformá-la.

Valéria: Ana, você tem um texto (na verdade, um livro), que é o Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia, no qual você já começava a fazer uma crítica a um tipo de Psicologia. Eu acho que esse livro me marca muito, porque nele você começa a falar de um tipo de Psicologia que começa a questionar que espécie de Psicologia nós temos, perspectiva que se ajusta perfeitamente ao percurso acadêmico que você acabou de recuperar nessa nossa conversa. Você sente isso?

Ana: Sinto sim. Você sabe que a minha dissertação de mestrado foi sobre a Psicologia, com a Silvia Lane. E a minha questão era o que os psicólogos pensam, o que eles fazem, motivo pelo qual entrevistei pessoas de reconhecimento na profissão, que tinham que ter publicação, um nome reconhecido, profissionais que seriam imediatamente reconhecidos pelas pessoas que viessem a ler aquelas entrevistas. Fiz um trabalho em que eu tinha um incômodo, porque comecei a perceber problemas entre os meus entrevistados. E aí eu dizia pra Silvia: “Eu sou parte disso. Eu não quero a arrogância de dizer assim: essa gente pensa que...” Que era um pouco a arrogância que a esquerda nos dava, né?

 

E a Silvia lidou bem com isso, e no fim das contas a minha dissertação de mestrado se intitula Estudando a psicologia: eu caçador de mim, que era o jeito com que eu me sentia à vontade para dizer aos colegas entrevistados por mim que eu também era objeto daquela crítica, isto é, que eu era a crítica, mas era também a criticada. E eu termino a minha dissertação dizendo assim: “Silvia, eu acho que os psicólogos não sabem o que é um fenômeno psicológico, eu acho que o problema está na concepção de problema psicológico”. E é isso que me levou ao Barão de Münchhausen porque eu fiz um questionário, mil questionários com o apoio do Conselho Regional de Psicologia (na época presidido, eu acho, pelo Adair Sás, que me acolheu), mandei mil questionários, o conselho me ajudou, a gente fez um sorteio aleatório... e eu recebi quarenta e quatro questionários de volta. E era um questionário que dizia assim: “O que é pra você um fenômeno psicológico?”; “Como você acha que esse fenômeno se constitui?”; “No seu trabalho, como você acha que ele está presente?”; “E o que você acha de saúde, do ponto de vista da Psicologia?”. E veja: eram apenas quatro perguntas! Alguns desses quarenta e quatro vêm respondidos, mas eu recebi mais uns vinte, talvez, em que as pessoas diziam assim: “Desejo pra você um bom trabalho, mas eu não soube responder ao seu questionário”. Era difícil aquilo... Aquilo ali foi comprovando que falar do fenômeno psicológico era uma coisa difícil. A Silvia, então, me disse assim: “É, mas quarenta e quatro questionários é pouco. Você tem que procurar uma outra fonte.” Aí eu fui atrás dos jornais, da revista Ciência e Profissão, e também dos jornais do sindicato. Peguei os jornais da FENAPSI, a revista Ciência e Profissão e fiz um estudo. A partir de então, fui percebendo, naquele estudo, que nós vivíamos então uma mudança de palavras, de discurso, sobre a Psicologia. Era interessante, porque era a ideia de comportamento, de controles, quando começam a aparecer a alienação, a consciência. Começava a aparecer um outro palavreado que me indicava a vontade de pensar o fenômeno psicológico de uma forma diversa. A seguir, fiz um contraponto da perspectiva liberal com a perspectiva que, na época, eu chamei de sócio-histórica. E eu acho que a experiência de ter feito o trabalho do Barão foi excelente, pois a Psicologia Social, com a Silvia Lane e com o grupo de pesquisa dela, era uma coisa que a gente nunca produzia sozinho. A Silvia fazia questão absoluta de ter grupos. Até hoje, na Psicologia Social lá na PUC, funcionam os chamados núcleos, grupos de pesquisa... Não tenho certeza do nome deles, acho que são núcleos de pesquisa. Neles, a gente tinha reunião semanal com todos os orientandos da Silvia Lane. E aquilo era um lugar muito interessante, porque eu tinha incômodos, eu tinha questionamentos, e aquele grupo ajudava a dar espaço para pensar isso. E eu acho que a partir dali (mas não que tenha surgido só a partir dali) surgiu em vários lugares o que a gente pode conceber como um embrião do que viria a ser a Psicologia do Compromisso Social, porque naquele espaço havia um questionamento sobre a formação, um questionamento sobre a visão liberal diante do fenômeno psicológico. Enfim, eu acho que o Barão do meu doutorado é realmente um salto, um amadurecimento importante no meu pensamento, na minha reflexão, no meu trabalho como professora, algo que vai se espalhar para outros colegas do curso de Psicologia. Eu já tinha me tornada diretora e aquilo que me deu um amadurecimento muito grande, ter que coordenar um curso com mil alunos, com grupos antagônicos, que disputavam espaço... Era um desafio fazer aquilo virar um espaço produtivo e de diálogo, aberto a perspectivas diversas. Eu me lembro que, na minha gestão, nós tínhamos um problema com uma cadeira que se chamava TPP, Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Era um problema porque nós tínhamos psicanalistas, junguianos, fenomenólogos, psicodramatistas, behavioristas, toda aquela diversidade, enfim, e todo mundo queria a cadeira de TPP. Então, eu fiz uma reunião com todos os interessados e falei assim: “Não, gente, vamos dividir. Por que não ter mais do que um professor?...”. E eles concordaram. Daí resultou um formato que eu acho que vigora até hoje: as turmas têm quatro núcleos, dois no primeiro semestre, e dois no segundo. Um módulo é ministrado por um professor psicanalista, um módulo por um behaviorista, outro módulo por um fenomenólogo, e assim por diante. E é curioso porque a equipe se uniu. Assim, acho que meu desafio passava muito mesmo pela diversidade, porque eu não era bem vista, já eu vinha da Social e diziam que eu queria acabar com a clínica. Quem tinha sido colega meu no curso de Psicologia sabia que eu tinha aquela radicalidade contra o burguês elitista. Mas acho, enfim, que o Barão foi uma experiência bastante importante de reflexão, que ajudou nessa incursão no projeto do Compromisso Social. Depois, Marcos Vinícius, quando foi fazer o doutorado dele, disse pra mim: “Ana Bock, eu vou criticar o seu Barão”. Ué, criticar o meu Barão? Ele disse: “É, sabe o que acontece no seu trabalho? Você naturalizou a Psicologia, você fez um trabalho bárbaro, mas na hora em que você constata a existência da Psicologia, fazendo um trabalho bem interessante, você não questionou a existência dela. Então, eu vou fazer um trabalho no meu doutorado que é exatamente a instalação histórica no Brasil”. E ele fez, de fato, um trabalho muito interessante.

Valéria: E como você vê hoje, então, a formação em Psicologia?

Ana: Olha, eu acho que o movimento das diretrizes curriculares desencadeado por nós naquela época, foi um momento bastante importante. Eu diria que essa minha avaliação de que ele foi muito interessante se explica porque esse movimento aglutinou, trouxe para dentro do debate, não só professores da USP, da UNB, da UERJ, da PUC-SP, da PUC-MG. Ele trouxe aquele conjunto de professores e de coordenadores de curso que estavam aqui nas chamadas entidades de pesquisa, que iam se constituindo, multiplicando, e que tinham uma perspectiva mercadológica, mas cujos coordenadores eram os próprios alunos da PUC, da USP, da UERJ. Então, havia um interesse em produzir um curso progressista e aquele fórum foi uma coisa maravilhosa. Eu sempre brinco que, graças à professora Carolina Bori, se formava uma força, porque para combater as ideias da professora Carolina, que tinha um projeto diferente do nosso, tivemos que formar uma força, porque ela era uma pessoa de muita força, de muito poder, muita convicção, muito argumento, muita capacidade. Nós tivemos que constituir, do outro lado, uma força que precisou avançar para debater aquele projeto que ela nos apresentava com uma comissão de especialistas do MEC. E, com isso, os Direitos Humanos entraram com força nos cursos de Psicologia. Hoje você tem cursos lá na conchichina, no interior de não sei qual estado, que tem um curso de Psicologia com um pingo de aluno, mas que tem uma disciplina de Direitos Humanos. A ideia do Compromisso Social agora está presente em todos os cursos de Psicologia. Eles arrumam como tema da semana, eles arrumam como tema do congresso que vai acontecer, eles põem como tema de uma feira de trabalho... Enfim, eu acho que houve a possiblidade de avançar, de construir. Eu só considero que a gente avança efetivamente quando um conjunto grande, diversificado, é capaz de avançar junto. Sem anular as diversidades, sem anular as diferenças, mas a gente tem que avançar. Se não você não avançou, não produziu uma liderança. E eu acho que nós avançamos naquele momento das diretrizes curriculares, a gente avançou bastante, aglutinando, porque a gente tinha que fazer aqueles enormes fóruns... Em qualquer congresso que fosse ocorrer, a gente produzia lá uma mesa sobre as diretrizes curriculares. A gente passou a fazer pesquisa sobre isso. E eu acho que, com as diretrizes curriculares, houve um avanço geral na Psicologia. No entanto, eu às vezes tenho uma sensação de que esse momento está passando, de que a gente tem tido dificuldades para dar continuidade ao nosso avanço, sobretudo agora que passamos por um momento muito desavergonhado de expressão do pensamento conservador. Se você prestar atenção, nós já aprovamos a Lei Paulo Delgado, nós estamos em plena superação dos manicômios e ainda há professores, aqui na PUC, por exemplo, professores de Psicopatologia, por exemplo, que são médicos e que não têm nenhum prurido de dizer que são manicomiais.