O Cidadão Anulado E Outras Histórias

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O Cidadão Anulado E Outras Histórias
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O Cidadão Anulado
Gift Foraine Amukoyo
O Cidadão Anulado e Outras Histórias
Contos

Gift Foraine Amukoyo

Tradução: Valeria Gauz

Publicado por

TEKTIME

© Gift Foraine Amukoyo, 2019


Publicado pela primeira vez em 2021

Todos os direitos reservados

Design da capa de Owoyale Ibrahim damola

Primeira impressão, julho de 2021

Tradução: Valeria Gauz

Para a minha avó

Esther Willie Awerije

SUMÁRIO

1 Um gesto de Amor

2 Histórias da Aldeia

3 Eu Enterrarei o meu Pai

4 Lição Amarga

5 Ouro na Lama

6 Leia e Lidere

7 Vida Moderna

8 Um Gosto de Racismo

9 Um Teste de Fé

10 O Jornalista Cidadão

11 Aso Ebi, o Tecido Tradicional

12 Ama e Amber

13 O Lado Sombrio de uma Maternidade

14 Nome e a Tradição de Vabam

15 Anita na Escuridão

16 Dê-me um Neto

17 Educação Sexual?

18 Em Farrapos

19 A Força da Mulher

20 O Cidadão Anulado

21 A Vida Tem seus Caminhos

Um

Um gesto de Amor

Rabisquei minha assinatura na primeira página do documento e parei. A caneta escorregou dos meus dedos úmidos de suor. Não era fácil dar fim à vida de uma pessoa.

Mira fixou seus olhos em mim, mas eles estavam distantes.

- Se realmente me ama, apenas assine. Você é o único membro da família autorizado a acabar com esse sofrimento - ela disse.

- Como posso fazer isso? Não quero perder a única pessoa que tenho na família. Você é tudo para mim nesse mundo.

- Eu não posso continuar assim. Estou sendo um estorvo.

- Fique comigo. Não me importo. Fique o tempo que quiser. Eu não quero ser o seu assassino. Não conte comigo.

- Não é homicídio; é suicídio. Eu estou me matando. Apenas faça, Tejiri.

- Não posso permitir isso. Mira, fique comigo.

Peguei os seus pálidos dedos.

- Tejiri, você não tem escolha. Todos morrerão um dia. Eu, hoje.

- Não, Mira. Eu realmente tenho escolha.

- Deveria fazer uma escolha sensata. Faça isso e volte para a sua vida. Estou matando você com a minha doença. Tejiri, olhe no espelho. Está perdendo peso. Estou mais gordinha do que você.

Ri. - Bem que gostaria; bem que gostaria, Mira.

Eu peguei seu punho fino e concordei: - Sim, você parece mais saudável do que eu, por isso deveria ir para casa e cuidar de mim. Sinto falta de todas as suas sopas e lanches. Gostaria que um milagre acontecesse.

- Se existisse, teria me livrado dessa doença há muito tempo. Todos os jejuns inúteis, vigílias e preces nas montanhas mostraram que não tive sorte para me curar. Milagres não existem. Se existem, eu fui abandonada; não são para mim. Ah, deuses do Céu e da Terra: preciso de uma segunda chance com saúde, para respirar sem medo de ser a última vez. A ideia de deixá-lo é a única coisa que me amedronta.

Mira se virou, a fim de esconder as lágrimas rolando por sua face.

- Mira, tenho tanto medo de ficar sem a sua presença. Ficarei tão sozinho... - Solucei.

Mira secou suas lágrimas, virou o rosto pra mim e respirou. - Pare de chorar como um menininho. Você já é um homem crescido. Essas bolas entre as pernas e a barba não são apenas enfeites. Tejiri, não seja imprudente. Você abriu mão do seu emprego para cuidar de mim. Pedi a seu chefe que segurasse a sua carta de demissão. Ele fez um favor a uma moribunda e lhe deu uma licença por sete dias. Ainda temos cinco. Tejiri, assine os papéis e volte a viver a sua vida.

Mira tossiu sangue por dez minutos. A visão era terrível. Via sofrimento em seus olhos e algo como uma súplica urgente. Peguei a caneta e rabisquei minha assinatura definitiva. Uma enfermeira com ar arrogante levou o documento embora. O sorriso e maneira de caminhar dela pareciam ser de triunfo. Isso deu um nó na minha cabeça.

O médico e duas enfermeiras retornaram com a injeção letal: - Deve ser rápido. É indolor - disse o médico.

Não conseguiria presenciar a morte da Mira. Saí do quarto, pensando se a minha decisão final tinha sido correta. Fora insuportável vê-la sofrer dia e noite. Sua dor no abdômen, constantes enjoos e vômitos deixaram um peso doloroso no meu coração. O câncer havia perfurado o seu intestino. Ela era alimentada por meio de sondas e evacuava na cama. Às vezes, quando tinha vômito fecal, os resíduos chegavam à sua boca, nariz e ânus ao mesmo tempo.

A doença de Mira irritava algumas enfermeiras. Hesitavam em atender os chamados do seu quarto. Uma vez, escutara uma das enfermeiras fofocar que eu havia perdido a noção das coisas.

- Ele está absorvendo a doença dela. Como pode uma pessoa respirar confortavelmente nesse corpo fedido?

Mira era o meu anjo da guarda. Ela me acolheu depois de eu perder os meus pais aos 15 anos, mortos durante um protesto contra salários atrasados e suspensos. De acordo com o relatório policial, balas perdidas os haviam matado. Eles eram a espinha dorsal do protesto de solidariedade à causa em Lagos. Por acaso, ouvi Mira dizer a um colega que eles foram vítimas de uma conspiração.

Meus pais morreram como médicos pobres. O juramento proferido, pessoal e profissional, foi o de salvar vidas. Pagavam contas de estranhos no hospital. Após o enterro deles, nenhum parente quis a minha guarda. Sabiam que o hospital particular da minha família estava falido. Mira me adotou. Era a enfermeira-chefe da instituição.

Eu estava exausto. Fechei os olhos. Minha cabeça doía. Ouvir a confirmação da morte de Mira seria como receber um soco. Sequer escutei os passos vindos na minha direção, até sentir mãos me tocando.

- Tejiri, ganhamos. O juiz concedeu permissão para você levar Mira para casa até que ela... se vá.

A novidade de Kome, meu advogado, me trouxe alegria. Chorei e o abracei com força. Corri na direção da enfermaria de Mira. Gritei para o médico parar o procedimento.

Eu estava ofegante ao chegar. - Pare, doutor, o seu hospital perdeu. O senhor e toda a equipe perderam. Eu ganhei a ação para levar Mira pra casa. Ela vai comigo.

Meu advogado adiantou-se com a ordem judicial: - Por favor, autorize a saída da paciente para o meu cliente. Daqui por diante ele é o responsável.

Sorri, radiante de alegria, ao ouvir a afirmação. - Sim, devolva a minha Mira. Todos devem ter dito a ela coisas horríveis para que odiasse a si própria e procurasse a morte como solução.

Toquei a bochecha de Mira.

Ela sorriu debilmente. - Você é um tolo. Ah, Tejiri, isso foi uma bobagem. O fedor será insuportável na sua casa. Depois da minha partida, o apartamento irá cheirar mal ainda por um bom tempo.

- Sim, Mira, é esse o meu desejo. Quero manter o seu cheiro; para sempre.

As enfermeiras não gostaram de limpar Mira nem pela última vez.

- Escute, enfermeiras, eu sei que nenhuma das senhoras quer fazer isso. Mas mudem essas caras carrancudas, façam isso sorrindo. Ela está saindo do hospital para sempre. Vou levá-la para uma ilha. Seremos apenas nós dois no paraíso.

- Mal posso esperar para ver esse paraíso - disse Mira.

- É apenas uma casinha bonita, numa ilha em Epe. Ah, Mira, você vai adorar.

* * * * * *

Estávamos na varanda. O sol da manhã nos banhava. Era como um bálsamo de cura. Havia feito muito frio na noite anterior. O calor moderado confortava a minha pele. Mira se sentia em casa. Ela estava em uma maca. Apoiei suas costas e braços em alguns travesseiros.

 

- Tejiri, você é o melhor cuidador do mundo. Prometo que não o incomodo.

Ela estava frágil. A maior parte de seus cabelos havia caído e os seus olhos tinham as cores de um rio sombrio e triste. Eu não conseguia enxergar a alegria que seu rosto costumava irradiar. Abri uma barra de chocolate e mordi um pedaço.

- Tejiri, por favor, me dê um pedacinho.

- Mira, e a diabetes? Isso tem açúcar.

Ela zombou: - Tejiri, Tejiri, pode um corpo morto morrer mais?

- De jeito nenhum, desculpe. Tome, pode comer esse e o resto que está na geladeira.

Abri um pouco mais a embalagem e dei para Mira. Ela comeu o chocolate macio com satisfação. Sorriu, saboreando e deu outra mordida.

- Mira, está na hora de tomar banho.

- Tejiri, me deixe ficar um pouco aqui. Estou adorando - Mira se aninhou ainda mais na cama macia.

- Sabia que você adoraria esse lugar. Eu sempre falei em construir uma ilha particular pra lhe dar de presente, lembra? Perdão por ter sido tão tarde.

Mira suspirou profundamente. - Tejiri, você fez bastante. Tenho tanto orgulho... Você agora é um bem-sucedido engenheiro de Petróleo. Um brinde à prosperidade! - e me deu um pequeno pedaço de chocolate.

Peguei e comi. Olhei para as águas calmas da ilha. Uma rajada de vento fresco soprou em meu rosto e pensei: “essa prosperidade nada significa sem você para desfrutá-la”.

- Vá, pegue aqueles chocolates. Quero comer todas as barras que houver na geladeira.

- Está bem, Mira, vou pegar os chocolates.

- Eu amo você, Tejiri.

- Mira, sabe o quanto eu a amo. - Dei um beijinho na sua testa.

Fui ao banheiro e, enquanto urinava, uma brisa fria roçou as minhas pernas. Tive um calafrio repentino e pensei de onde poderia vir, porque a temperatura do banheiro estava cálida. Olhei a porta e a janela fechadas; fiquei meio sem entender. Sacudi minha cabeça, dei descarga e lavei as minhas mãos.

Levei um tempo para abrir todos os chocolates, colocá-los numa bandeja e cobri-los com um pano. A caminho de Mira, tropecei e gritei. Machuquei o dedão, mas ignorei a dor e corri para a varanda.

Mira estava confortavelmente relaxada. Tinha colocado um travesseiro sob os pés. Seus lábios estavam lambuzados de chocolate. Sorri, coloquei a bandeja sobre a mesa e me ajoelhei em frente a ela.

- Mira, olhe só quantos chocolates. Você vai fazer uma festa!

Mira estava em silêncio e imóvel. Peguei sua mão: o corpo estava quase frio. Seus olhos permaneciam abertos. Fechei suas pálpebras e chorei. Mira não esperou para se despedir de mim...

Lágrimas rolaram pela minha face por muitos dias.

Dois

Histórias da Aldeia

Jessa nasceu em Jagua. Quando o homem mais velho da aldeia morreu, ele esperou fervorosamente ascender a essa posição, por isso ficou chocado com as notícias recebidas do Conselho de Coroação sobre Jagua não ser o seu lugar de origem. Assim, eles não poderiam coroá-lo como Okpako – o ancião da aldeia. Seus ancestrais tinham sido andarilhos. Como Jagua era hospitaleira, haviam resolvido se estabelecer naquela comunidade.

O primogênito de Jessa, Jaja, ficou enraivecido. Jurou processar a comunidade perante o Tribunal. Queria provar que eles estavam enganados, pois quatro gerações do seu clã já não eram de forasteiros.

Jaja argumentava que, quando um indivíduo permanecia em determinado território por algumas décadas, naturalmente se tornava cidadão do Estado. Os migrantes eram aceitos e respeitados como os locais. Tinham as mesmas vantagens, apesar de não existir nenhuma documentação oficial de cidadania no passado. Jessa tentava convencer o filho a não entrar com a ação na Justiça.

Entretanto, Jaja estava inflexível e deu entrada ao processo. Dizia ao pai que a denúncia pública sobre o seu clã era deplorável.

- Amanhã, procurarei obter informações na aldeia - declarou Jaja. - Traçarei nossas origens.

No dia seguinte, Jessa saiu para um passeio noturno. Ao retornar, seu filho estava esperando na sala. Jaja se levantou e colocou o pai sentado, encostando a bengala dele na parede.

- Onde esteve? - Jaja perguntou. - Parece exausto. Vou pegar um copo d´água pro senhor.

Jessa bebeu a água vagarosamente até o final. Jaja pegou o copo e o colocou sobre a mesa.

- Obrigado, filho. O que descobriu? Você ficou muito tempo fora.

Pegou sua caixa de rapé e colocou um pouco do pó nas narinas. Espirrou e beliscou o nariz.

- Pai, tracei nossa genealogia até Ebito. Fica a quatro aldeias de Jagua. Foi de lá que seu bisavô migrou. As pessoas me receberam com carinho. Pai, eles reconheceram a marca de nascença na minha bochecha. Disseram que o seu bisavô tinha a mesma marca.

Jessa acenou com a cabeça, nervosamente.

- Irei para lá e construirei uma casa; uma nova casa para nós - afirmou Jaja.

Jessa não estava contente com essa notícia. Ele não queria deixar Jagua. Essa terra era patrimônio dele. “Por que construir uma nova casa tão cedo”? Pensou, preocupado. Pegou o copo e o colocou entre as pernas.

Jaja percebeu que seu pai não estava feliz.

- Pai, por que está tão triste? O senhor deveria estar alegre porque descobrimos nossa real identidade. Eu sei que nós perderemos muitas coisas ao sair de Jagua – alguns bens e lembranças preciosas. Adoraria ficar aqui, mas a comunidade ridicularizou e desonrou a nossa família. Não se preocupe, pai. Nunca é tarde para começar de novo. O pior dano teria sido não sermos capazes de descobrir a nossa cidade natal. O bom é que um parente até mesmo reservou um pedaço de terra para nós em Ebito. Irei para lá esta noite. Temos muito trabalho pela frente. Liguei para os meus irmãos quando voltava de lá e eles enviaram dinheiro para a compra do material de construção.

Jaja ajoelhou-se em frente ao pai e tocou em seus pés, em sinal de respeito. Jessa deu um tapinha amoroso no ombro do filho, que levou o copo para a cozinha e se dirigiu ao seu quarto. O semblante de Jessa estava pesado.

* * * * * *

Pela manhã, o ancião deu uma caminhada pela aldeia num silêncio inquietante. Foi até a margem do rio, onde havia passado a maior parte de sua vida, nadando, quando menino e pescando, já adulto. O rio era bom para ele. Foi em suas lindas areias brancas que certo dia encontrou um enorme diamante.

Jessa não o cobiçou apenas para si próprio. Toda a aldeia se beneficiou com a venda do diamante. Ele enviou os seus filhos e outras crianças da comunidade para estudar na cidade. Seus filhos eram bem-sucedidos em suas carreiras. Quatro deles moravam na Europa. Apenas Jaja estava em Jang, uma localidade perto de Jagua.

Jakpo, um amigo íntimo de Jessa, aproximou-se:

- Vi Jaja esta manhã. Ele me contou tudo. Jessa, por que quer ir embora? O povo de Jagua não pediu para você ir embora. Essa tristeza é porque não pode ser o Okpako? Jagua não pode lhe conceder esse título. Você não é um cidadão legítimo, motivo pelo qual não pode ser o membro mais idoso da comunidade. Esse título é como se fosse uma realeza. A aldeia não pode dar esse título a um forasteiro.

- Não, Jakpo, está enganado. Esse título é honorário para um homem que já vive há muitos anos nessa Terra e em determinado lugar. O título não é o legado de uma casa real. É um título de transição para um homem comum. Qualquer pessoa digna pode merecê-lo. Você sabe há quantas décadas estou em Jagua? Eu nasci aqui. Tenho 88 anos. É um privilégio, quando os deuses permitem a cabeça negra de um homem se tornar grisalha. Não se pode transformar diamante em ouro, mas eu ganhei essa honra. O Conselho de Coroação pensa que roubou a minha alegria, mas esses homens estão enganados. Não importa se a comunidade me concede o título ou não. Eu ganhei esse direito por natureza.

Fez-se silêncio por alguns minutos.

Jakpo pigarreou e mastigou o seu bastãozinho de escovação. Cuspiu alguns pedaços e o mastigou novamente.

- Sou o próximo da fila. O povo de Jagua irá me coroar Okpako.

- Sim, parabéns, meu bom amigo. Possam as bênçãos dos seus ancestrais se derramar sobre a sua vida. Como se diz aqui, nunca tivemos dificuldades com os peixes no rio. Sempre houve o suficiente para cada pescador. Não vamos brigar por causa de um título. Eu lhe desejo o melhor, meu amigo.

- Jessa, não deveria ir. Você é uma parte importante desse reino. Seus ancestrais moram aqui.

- Meus ancestrais também vivem em Ebito. Oferecerei libações a eles em meus últimos dias na Terra. Não os conheci, então deixe-me ir e venerá-los em Ebito. Jakpo, preciso ir, retornar às minhas origens. Rezo para ser bem recebido. Tenho certeza de que o meu próprio povo não me pesará com a balança do desprezo. Quem sabe, meu amigo? Os deuses me deram oportunidade para me reconciliar com as minhas raízes. Lá, os descendentes dos meus filhos não serão uma geração perdida. Não serão negados pela família. Eu só imagino quem revelou esse “conhecimento” após tantas décadas. Eu nunca soube não ter nascido em Jagua. Alguém sabe da minha história mais e melhor do que eu mesmo?

Jakpo desviou o olhar.

- Jakpo, você tem alguma noção de quem disse que eu não era originalmente de Jagua?

Jakpo riu com nervosismo. - Não, meu amigo. Não faço a menor ideia, - disse, rapidamente. - Espero que mude de opinião a respeito de deixar Jagua; sua decisão é tão torta quanto esse rio. Sei do seu desejo de ficar em Jagua.

- Meu coração sempre estará com esse rio. Essas águas vivem nas minhas veias. Mas agora, deixe-me provar das águas das minhas origens. Se dependesse de mim, eu envelheceria e morreria em Jagua. Meus filhos, sim, desejam a nossa mudança daqui para sempre. Preciso acatar o pedido deles. Um homem não pode ter medo de andar nu em sua própria casa; somente o hóspede tem de ter cuidado na casa. Eu tenho muitos “hóspedes” em Jagua. Deixe-me levá-los de volta pra casa. Meus filhos se sentirão completamente estranhos aqui quando eu morrer. Qual é o sentido de permanecer em Jagua, quando as pessoas nos mostram que nosso lugar não é aqui? A herança da qual tanto me orgulho não serve como identidade para os meus filhos. Deixe-me levá-los para casa, de forma a que possam se orgulhar de sua origem.

Jakpo olhou para além do rio com um sentimento de nostalgia e perguntou:

- Você se lembra uma vez, de como corremos atrás de um coelho até a sua toca?

- Nós fechamos o buraco. Tínhamos ido buscar lenha na floresta para preparar carne de caça e não conseguíamos encontrar o caminho de volta. - Jessa lembrou.

- E quase fomos carne de caça quando aquele lobo investiu contra nós. – Jakpo falou isso rindo.

- Tivemos sorte de o caçador tê-lo matado antes de sermos atacados, - disse Jessa, e bufou a seguir.

Os dois anciãos riram. Relembraram as ocasiões em que corriam pela comunidade quando crianças, mas seus sorrisos desapareceram quando a realidade se fez presente.

- Os dias andam cinzentos e difíceis, - Jakpo conjecturou. - Sentirei a sua falta, meu velho amigo. Quando você se for, ficarei muito só. Esses jovens não têm tempo para velhos rabugentos. Quem me fará companhia?

- Quem me visitará e tomará conta de mim, se eu ficar? Vou perder Jaja e os meus outros filhos, se não for para Ebito. Eles tomaram a decisão. Querem deixar Jagua para sempre.

Jessa cuidadosamente se curvou e pegou um seixo. Apertou-o com força e sentiu a energia da pedra.

Jakpo assentiu com a cabeça: - Você tem um grande filho naquele jovem, o Jaja. Gostaria que um dos meus voltasse para casa. Décadas de lembranças irão desaparecer após a sua partida. Adeus, meu amigo; nos encontraremos do outro lado.

- Sentirei a sua falta. Não posso dizer o quanto e você não pode ver direito, pois meus olhos estão muito secos agora, de tanto eu chorar.

Desejou boa sorte a Jakpo e o deixou à beira do rio.

 

- Espero que você mude de opinião e fique, meu amigo. Não sabia que a situação se tornaria tão complicada assim. Eu só queria o que era meu por direito, - Jakpo sussurrou após a figura de Jessa desaparecer na paisagem.

Jessa voltou para casa. Algumas crianças vieram brincar e ele compartilhou o dinheiro que tinha no bolso.

* * * * *

Antes de amanhecer, Jessa e Jaja estavam prontos para viajar para Ebito. O ancião olhou na direção do riacho com saudades. Imaginou-se caminhando naquela direção com Jakpo e seus apetrechos de pescaria.

- Não é fácil deixar essas lembranças para trás. - Jessa estava muito triste.

- Venha, pai. O senhor já se despediu o bastante. Devemos partir antes do nascer do sol, pois a estrada não é boa na hora do trânsito pesado.

- Sim, algumas estradas não reconhecem as velhas rodas que sempre passaram por elas. Não lhes dão tratamento diferenciado. Vamos. Não somos mais bem-vindos aqui.

Duas semanas mais tarde, os anciãos da aldeia fizeram um encontro e concluíram que a casa de Jessa seria o novo local de reuniões. Ele a deixara como presente. Porém, no dia da Coroação de Okpako, as retroescavadeiras apareceram.

A voz do motorista do veículo ressoou em um alto-falante. - Todos nessa casa devem sair! Em pouco tempo, ela será demolida. Vou contar até trinta e avançar.

Ele começou a contar: - um, dois, três, quatro....

Ao chegar a dezenove, já estava vazia. A retroescavadeira colocou a casa abaixo, obedecendo as ordens de Jaja.

As pessoas assistiram com tristeza quando alguns homens quebraram com marretas as paredes restantes. Nenhuma estrutura permaneceu de pé. Os pedaços de cimento foram colocados no reboque e levados dali.

- Esse é um acontecimento ruim. Como podemos fazer a cerimônia da coroação nessas ruínas? Temos de procurar outro local ou marcar nova data para a coroação. - Disse um jovem.

- Mas, onde está Jakpo? - perguntou o líder da comunidade, com certa ansiedade.

- Ele ainda não havia chegado. Será que já sabe da novidade? Esse incidente infeliz irá arrasá-lo. Sua cerimônia foi arruinada e não poderá acontecer hoje. - Mencionou um senhor.

- Jakpo deve ter ouvido a notícia. Ele sabe tudo. Não foi ele que descobriu que Jessa não era cidadão de Jagua? Vamos fazer uma visita, - disse o líder.

Não encontraram Jakpo em casa. Sabiam que ele gostava do rio e pensaram que poderia estar lá.

Ao sair da casa a caminho do rio, encontraram o menino que tomava conta dele. Jakpo saíra ao nascer do sol.

- Esse é um comportamento estranho. Vamos ver se ele está no riacho.

Chegaram ao rio e viram Jakpo boiando na margem. Correram e o arrastaram para a terra. Estava morto. Viram seu par de sapatos, óculos de leitura e um livro embaixo de sua árvore favorita. Jessa e Jakpo haviam talhado algumas raízes de árvores próximas à beira d´água para fazer bancos. Seus pertences estavam empilhados sobre a raiz. O menino caiu no choro.

- Acho que ele cometeu suicídio. Ah, o reino das trevas lançou seus olhos malignos sobre Jagua. Hoje é um dia muito infeliz na nossa história. Quem nos acordará desse pesadelo? - lamentou uma mulher.

- Olhe aqui, chefe. - O menino limpou as lágrimas com o braço e lhe entregou um bilhete.

- Onde você encontrou isso? - perguntou, com espanto.

- O que diz a mensagem? - uma mulher indagou.

O líder da comunidade leu em voz alta:

“Eu não posso conviver comigo mesmo após trair o meu melhor amigo, Jessa. Desculpe-me, querido amigo. Meu bisavô havia me contado sobre a sua história. Eu disse aquilo ao Conselho de Coroação porque achei que merecia ser o Okpako. Pequei ao invejar a sua situação. Por favor, me perdoe. Ninguém deve chorar por mim. Eu já fiz isso. Jakpo”.

Porque cometeu suicídio, a comunidade não fez uma cerimônia de enterro para ele. Seus filhos o carregaram para a floresta do mal e jogaram o corpo para os animais selvagens enterrá-lo em seus estômagos.